A análise da obra de Isaque Pinheiro revela alguns indícios de coincidência, que podem trazer pelo menos uma hipótese: a de que a sua
motivação criativa se encontra plenamente preenchida quando
expressa as vicissitudes do processo ontológico em que está inserida. É possível constatar que esse processo ontológico se caracteriza pela circulação entre duas polaridades, entre dois princípios energéticos, antagónicos mas complementares: um positivo, outro negativo, um centrípeto, outro centrífugo, um feminino, outro masculino. Podemos designá-los usando referências como as de
Animus e de
Anima, os termos latinos pelos quais Jung identifica o dinamismo dual do psiquismo profundo, e que Bachelard emprega para elucidar a sua psicologia do devaneio poético: o devaneio do criador de imagens, que
sonha o mundo – os seus objectos e a sua matéria – realizando-se, por meio dessa experiência de unidade psíquica, como ser imaginante, integral. Esta oposição é estabelecida na simbólica tântrica hindu como
Yoni e
Linga, respectivamente o princípio psico-cósmico feminino, simbolizado na fertilidade e na gestação, e representado em ícones figurando a vulva, e o princípio psico-cósmico masculino, simbolizado na regeneração, na destruição e na renovação, e representado em ícones figurando o falo[1]. A obra descreve a integração complementar destas duas polaridades ou princípios, o trânsito entre ambas. Trabalho após trabalho, o autor apresenta sucessivos diagnósticos ontológicos, correspondentes ao estado de
circulação entre as polaridades em diferentes etapas biográficas, à medida que vão decorrendo. Os elementos de iconografia são símbolos da interacção diacrónica entre ambas, e transmitem – mais do que comunicam – a narrativa mítica do ser imaginante que sonha o material do mundo. Os conteúdos plástico e poético da obra incorporam a realidade psíco-física do sonhador – são dotados de carga
simbólica, de poder energético primordial, de força mágica. A linguagem da iconografia, figurativa ou elementar, comprova a eleição de um escasso número de objectos da realidade como ícones ou signos de conteúdo, que se impõem pela concentração de carga simbólica. O trabalho de Isaque Pinheiro caracteriza-se por uma evidente legibilidade cognitiva, notória na economia da comunicação plástica – morfológica, cromática, material – que permite o reconhecimento dos signos (objectos e formas) e da sua fenomenologia; caracteriza-se ainda por uma síntese conceptual coesa, na qual as conotações significantes dos signos combinam vários estratos iconológicos, em conexão familiar e lúdica, automática e paradoxal. [1]A legitimação do princípio psico-cósmico feminino (
shakti) ocorre no período da dinastia Gupta, ao longo da segunda metade do primeiro milénio d. C., em consequência do estabelecimento da escola tântrica, de síntese das diversas tendências que constituíam o hinduísmo da época. O proselitismo desta escola, que se torna dominante durante a era tântrica-purânica, de 500 a 1300 d.C., dever-se-á também ao facto de esta ter conseguido uma integração das crenças e práticas populares rurais, predominantes nas extensas áreas rurais, e que consistiam frequentemente em cultos locais a divindades femininas, símbolos da fertilidade, herdadas de antigos cultos pré-históricos; FEUERSTEIN, Georg,
A Tradição do Yoga, Ed. Pensamento, São Paulo, 1998. Um fluxo entre dois pólos Na obra de Isaque Pinheiro, a circulação entre dois pontos, que refere um tipo de relação interactiva entre duas polaridades, aparece resumida na ideia de fluxo e, mais concisamente, na ideia de circuito, simbolizando o dinamismo do devir pessoal. Uma das primeiras peças do artista, em granito negro, de 1992, é um lavatório colocado na vertical, cujo ralo comunica directamente com uma torneira, colocada na parte de trás (anteriormente parte de baixo) do mesmo. Nessa peça, a ideia de circuito fica patente na recriação de um vínculo de circulação estabelecido entre dois objectos reconhecidamente significantes e conotativos de
corrente, ou
curso – o ralo e a torneira – mas numa ordem
errada, do ralo para a torneira. Esta ligação ilustra uma direcção impossível ou absurda para a lógica da realidade empírica ou natural, porém simbolicamente verosímil enquanto metáfora optimista, manifestando o material energético de um momento impulsionador, o
ralo-torneira como ponto de passagem em que o escoamento da corrente de matéria usada dá origem, directa e instantaneamente, a uma corrente de matéria nova, ou como anel de filtragem, dando passagem a uma corrente de matéria permanentemente purificada. A mesma ideia de fluxo de materiais e energias em circuito de reciclagem está patente no trabalho
Domus, em mármores diversos, de 1994. Este trabalho reúne o catálogo quase completo dos signos que caracterizam as peças realizadas na primeira metade dos anos noventa. Um armário com um urinol acoplado atrás; sobre o armário um lavatório/televisor com uma torneira acoplada atrás, ficando esta directamente acima do urinol; sobre o lavatório/televisor, um vaso com uma flor, e um cabo ligando a zona de despejo do urinol até uma ficha de ligação eléctrica na base do vaso acima. Na narrativa mítica deste sobrecarregado circuito surreal, a corrente de matéria fluída que é lançada pela torneira para o urinol é
elevada, transportada em sentido ascencional, até à base do vaso situado acima, onde cresce a flor. Posteriormente, na metáfora de fluxo ou circuito, alguns signos sugerem a projecção de feixe de matéria, representando a ideia de transmutação, de uma evolução no estado elementar da matéria. Na peça
Curto-circuito (1995), em mármore ruivina, um cabo eléctrico descreve uma recta que atravessa a superfície da pedra, e detém-se no aro de um ralo fechado com a respectiva tampa, constituindo uma visão metafórica da incompatibilidade elementar de canais e circuitos de energia. No trabalho
Canalização (1995), em mármore e ferro, um televisor emite luz, iluminando um sofá à sua frente, no assento do qual repousa um cálice. Numa lógica de realismo natural, o peso do cálice deforma o assento do sofá e, numa lógica metafórica, a sombra gerada pelo cálice ganha peso e deforma o encosto do sofá. Uma energia imaterial, subatómica, ganha realidade material, causando um efeito tridimensional, concretamente plástico. O sonhador de objectos É possível caracterizar a preferência por certos objectos do quotidiano. São objectos indispensáveis ao longo do dia, importantes na rotina individual de quem vive num corpo, lavando-se, alimentando-se, preparando ou excretando os alimentos, efectuando os gestos que realizam essas acções. São objectos não conspícuos, invisíveis pela vulgaridade da sua presença universal, todavia frequentemente percepcionados e
sonhados: investidos de carga simbólica. Existem em espaços para uso reservado ou privado, e estão fisicamente presentes na realidade próxima que circunda a realização de tarefas privadas ou acções íntimas, suscitadoras de momentos de atenção subjectiva, de introspecção, de devaneio poético. «O
devaneio de objectos é uma fidelidade ao objecto familiar. A fidelidade do sonhador ao seu objecto é a condição do devaneio íntimo. O devaneio alimenta a familiaridade. (…) Os objectos privilegiados pelo devaneio tornam-se o complemento directo do cogito do sonhador. Dizem respeito ao sonhador, sustentam o sonhador. São, na intimidade do sonhador, os órgãos do devaneio. (…) O
cogito difuso do sonhador de devaneio recebe dos objectos do seu devaneio uma tranquila confirmação da sua existência»[2]. A linguagem figurativa deste período inicial de criação artística, de um naturalismo realista, indica a prevalência deste mesmo devaneio, mas também um reforço do elo de intimidade que une o sonhador aos objectos do seu devaneio. O virtuosismo manual que mimetiza objectos do quotidiano, transforma a matéria de suporte com uma habilidade intuitiva que demonstra o conhecimento empírico e a familiaridade que o artista detém, tanto com o objecto do devaneio, como com a matéria de suporte, que passa a ser também objecto de devaneio. Os objectos identificam o sonhador: Isaque é o mestre de obras perfeccionista e devotado que remodela com profissionalismo qualquer divisão de uma casa, é o artista encantado pelas imagens que lhe são trazidas pela matéria, pelos objectos e materiais com os quais trabalha. «Subitamente, uma imagem coloca-se no centro do nosso ser imaginante. Esta retém-nos, fixa-nos. Infunde-nos de ser. O
cogito é conquistado por um objecto do mundo, um objecto que, só por si, representa o mundo. (…) O sujeito do devaneio fica espantado ao receber a imagem, espantado, encantado, acordado. (…) O devaneio poético é sempre novo perante o objecto ao qual se liga. De um devaneio ao outro, o objecto não é o mesmo, renova-se e essa renovação é uma renovação do sonhador (…) o seu
cogito não está dividido pela dialéctica do sujeito e do objecto»[3]. [2]BACHELARD, Gaston,
La Poétique de la Rêverie, PUF, Paris, 1986, p. 143. [3] BACHELARD, Gaston,
La Poétique de la Rêverie, PUF, Paris, 1986, p.132, p.131, p.135, p.140. Desacerto nas polaridades conjuntas: logros na matéria Por outro lado, os mesmos objectos relacionam-se com a passagem de líquidos, com a circulação de material fluido, e comportam a sugestão subjacente de desenvolvimento e disseminação de matéria genética, mantendo latente a identificação dos signos como respeitantes a uma função feminina ou a uma função masculina. Um desentupidor, em mármore azul cascais (1994) é simultaneamente
yoni, na ventosa, e linga, no cabo, tendo como utilidade prática desobstruir a circulação, e assinalando simbolicamente a plenitude da relação entre dois seres individuais.
O mesmo objecto ocupará o lugar central na peça
Lar, doce lar (1995), reiterando o testemunho de completude e preenchimento, em repouso sobre a sua pequena cama. Na segunda metade dos anos noventa, a obra de Isaque Pinheiro acompanha as vicissitudes biográficas, evoluindo sob a influência dos eventos afectivos que lançaram esta iconografia figurativa de identificação de género. O sonhador da matéria projecta a sua
decepção ensaiando
logros na matéria: pendurado de um cabide, um pequeno armário de cartão guarda vestimentas em mármore (1996).
A ideia de fluxo ou circulação desaparece, os cordéis que atam as formas encerradas não são condutores. O artista encontra o embrulho como objecto de devaneio. Esculpe em mármore e reveste algumas partes com cartão, montando um engano prodigioso para a perplexidade do observador: uma caixa de cartão atada com barbante de pedra, ou um papel de pedra embrulhando uma caixa de cartão. A sequência de embrulhos tem a sua origem numa peça não executada, cuja ilustração de projecto mostra os restos de embrulho envolvendo ainda uma estante de livros. O livro adquire uma conotação específica, ícone literal representando a linguagem sem comunicação, simbolizando um
animus anti-anima: o cogito que pensa em desacordo com o cogito que devaneia. A caminho de suscitações imaginativas fundadoras O sopro de enlevo íntimo regressa em 2000, com uma iconografia de formas elementares, pregnantes, primeiro não figurativas, mas figurativamente sugestivas, com aplicação de objectos realistas e, mais tarde, explicitamente figurativas e realistas.
Adanarg, anagrama de granada, é uma pequena esfera de mármore à qual foi aplicada um ralo e um cordão de ligação com a respectiva tampa de borracha na ponta.
O artista regressa ao devaneio de objectos familiares, reactivando a simbologia de fluxo, de circulação de fluidos, trabalhando os mesmos materiais rígidos (pedra, metal) mas agora usando formas redondas, simulando materiais morfologicamente extensíveis, elásticos, insufláveis. Num exemplo posterior, de 2002, de objectos deformáveis e contentores de fluidos imateriais, Isaque executa virtuosamente, em mármore, um balão ainda com ar, cingido em várias voltas por um fino cordão de esferas metálicas.
Se
Adanarg é um receptáculo, um signo figurando o feminino,
“Made For It” (2001) é a figuração de um falo.
A única peça da obra de Isaque com título em língua inglesa, feito em cerâmica de Valadares como se lê no logotipo,
“Made For It” é um desmesurado cabide fálico para colocar na casa de banho, uma inversão da descontextualização preconizada pelo ready-made mais famoso de Marcel Duchamp,
Fountain de H. Mutt.
Bem me quer, mal me quer, muito, pouco, tudo ou nada, de 2002, é um auspicioso devaneio a partir da matéria, que anuncia o artista liberto do entretenimento dos logros, e motivado por suscitações imaginativas fundadoras. Em cenários diferentes, o artista apresenta um conjunto de várias grelhas para assar, cada uma comprimindo uma posta de mármore, figuração simbólica da
carne do planeta. Uma das postas conserva restos de um clássico desenho de tatuagem: “amor de mãe”.
A instalação
Hoje amo-te (2003) constitui um painel de resumo retrospectivo da obra, mostrando as sucessivas etapas da indagação interior do artista no percurso de regresso ao ser imaginante em plenitude: os lençóis
Amo-te; a pele de couro estendida sobre a qual repousam dois
“Made For It” acoplados pela base; o volume pendurado, revestido a couro, deixando à vista um pedaço de mármore que busca persuadir o observador de que o volume escondido não é feito de enchimento; e, finalmente, um grande livro de páginas em branco, aberto, exibindo um volume recortado no qual repousa, feito em mármore, um preservativo usado e vazio, fechado por uma abertura de insuflar em latão – a derradeira ilustração do anti-
anima: o
cogito do pensador, simbolizado no livro, encerrando o cogito do sonhador, simbolizado no preservativo usado e vazio, resíduo do impulso de renovação e regeneração do ser imaginante.
A peça
Amor de Mão (2003) elucida-nos acerca de mais uma etapa na reactivação da simbologia de fluxo, por meio da já ensaiada iconografia de objectos deformáveis pelo sopro: uma peça de mármore imita em grande escala (75x75x30cm) uma luva cirúrgica insuflada; uma forma redonda, grávida, prefigurando cinco falos, correspondentes aos cinco dedos da luva.
Antecedendo a presente exposição, Isaque realiza o vídeo
Onde há fumo há fogo (2004) em co-autoria com Rute Rosas: trata-se de um cerimonial de amor, em que dois amantes fazem looping com fumo de cannabis. Num grande plano com as duas cabeças de perfil, Rute e Isaque, par isomorfo, aproximam-se e afastam-se para, repetidamente e à vez, soprar e aspirar, da boca um do outro, o fumo dos deuses. Impacto, a energia é a forma da matéria O projecto das
Mais Altas Esferas mostra vários painéis de azulejo amolgados pelo impacto de esferas de mármore, que se apresentam revestidas a couro negro, apetrechadas com limpa pára-brisas e retrovisor. O meticuloso trabalho de modelagem e cozimento do couro, e a lógica iconográfica que associa esse paramento aos apetrechos de viação, ilustra a dualidade antagónica e complementar recorrente na obra de Isaque Pinheiro.
A simbologia de fluxo, de circulação que, até ao vídeo
Onde há fumo há fogo, não era explicitamente cinética, é plenamente retomada: a forma esférica é sugestiva de uma acção locomotora, o resultado do impacto é sugestivo de um movimento no plano, dispensando a figuração de um circuito, representado por signos ou por percursos. Por outro lado, a montagem de
flip-books fotográficos, que mostram sequências animadas do movimento da esfera, constitui uma reconciliação prática com um símbolo outrora representativo do devaneio impedido. Expressas numa iconografia figurativa, realista, mas elementar e conceptualmente articulada, as imagens sonhadas pelo artista asseguram-nos de que «o
cogito do sonhador não segue preâmbulos complicados, é fácil, sincero, e está muito naturalmente ligado ao seu complemento de objecto», isto é, a energia é a forma da matéria.