Na obra de Isaque Pinheiro (Lisboa, 1972) o acto de replicar um objecto de uso quotidiano está intimamente ligado a uma prática proficiente que, não sendo refém de uma obsessão pelo virtuosismo, presta especial atenção ao detalhe executado em técnicas e materiais muito diversos, como a madeira, a cerâmica, o plástico, metais ou pedra, entre muitos outros.
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Nos diversos objectos que desenvolveu, a referência a Marcel Duchamp indicia uma atitude perante o legado da arte conceptual, a sua reinterpretação, por vezes irónica, e muitas vezes crítica na sua relação com a história recente da arte, mas também com os modelos canónicos do classicismo, como se pode observar na obra “Ampulheta”, de 2013.
Contudo, durante um certo período da sua obra, Isaque Pinheiro desenvolveu peças de grande escala tomando como modelos objectos reconhecíveis de uso quotidiano, talvez aqui numa aproximação à Pop Art, a Andy Warhol e, numa observação mais imediata, a Claes Oldenburg e Coosje van Bruggen, sua mulher. Quando proponho uma aproximação, e não uma influência decisiva, é porque Isaque Pinheiro não segue a mesma metodologia em termos cromáticos e na tipologia de objectos que selecciona. Estes não são objectos da sociedade de consumo, mas sim, na sua maior parte, ferramentas de uso de trabalho oficinal, como por exemplo as fitas métricas de marcenaria, da série intitulada “Mão Livre”, de 2011; ou ainda “7 Chaves”, de 2010, um conjunto de esculturas de parede executadas a partir de ferramentas, como a histórica chave inglesa utilizada na mecânica. Em todas estas obras e, se assim podemos dizer, na sua obra em geral, a escultura é um campo de trabalho que tem uma particular relevância nos processos e decisões que o artista desenvolve mental e manualmente. A manufactura destas obras remete inevitavelmente para o universo do trabalho, dos materiais e do factor retributivo que todo o trabalho implica, e assim das suas condicionantes sociais e dos mercados que lhe correspondem. Como exemplo, podemos revisitar a série “Vendo País para comprar casa”, de 2019, que estabelece um jogo crítico e satírico com os valores económicos e tem a sua raiz numa outra obra, executada uma década antes e intitulada “Há mas são verdes - 0000001”, de 2009. É uma escultura em mármore que replica um recibo verde de uma profissão liberal (de um artista: pode ler-se, no campo da Actividade Exercida, “Escultura”), com as seguintes dimensões: 50 x 60 x 2 cm. A escultura é decisivamente ampliada na sua escala e proporção, deixando de ser um documento proporcional à mão e ao caderno de bolso para ser um objecto com uma dimensão semelhante a uma pintura de formato médio, mais característico de uma representação de interior ou de uma paisagem. Neste aspecto, o trabalho de Isaque Pinheiro cria uma leitura disruptiva, dado que na referência do motivo remete para um universo conhecido, mas o que de facto presenciamos como obra de arte, como representação, reenvia-nos para um discurso universal sobre as suas condições de possibilidade na relação com o espectador.
Deste modo, o projecto iniciado em 2019 sob o título “Produção Caseira” assenta, por um lado, em algumas das premissas aqui elencadas, e por outro numa ideia que reúne categorias que geram um factor de empatia entre elas. Estas são, segundo o artista: “Arte, economia e auto-sustentabilidade”, sendo neste âmbito que a sua obra ganha uma densidade social e política. De que trata, na realidade, esta produção caseira? Trata de replicar, pela prática da xilogravura, a impressão de notas de Euro, inicialmente no valor virtualmente fiduciário de 50 €, recentemente no valor de 100 €, e para breve as que correspondem aos valores de 200 € e 500 €. Estas impressões em papel, a partir da matriz de madeira, são manufacturadas, irregulares na impressão e de dimensão superior aos originais. Não se trata, portanto, de uma apropriação verosímil do original, mas de construir uma série, em múltiplos que perfazem o mesmo valor final da edição que remete para o original da moeda de troca. Assim as gravuras de 50 € têm uma edição de 200 exemplares, as de 100 € uma edição de 100 exemplares, as de 200 € terão uma edição de 50 exemplares, e a edição final a partir da nota de 500 € contará com 20 exemplares destas gravuras.
Acresce ainda que estas gravuras, e outra documentação do projecto, são transportadas numa mala revestida e pintada de forma artesanal, uma prática “caseira” quase próxima da bricolage, que exibe um desgastado padrão da griffe Louis Vuitton. Esta é também uma das marcas de luxo exclusivas mundiais sujeitas à contrafacção, acto penalizado por lei, mas que proporciona a vulgarização de uma representação de um objecto que distingue o poder de compra entre as classes sociais, atribuindo-lhe uma falsa distinção que é imperceptível ao olhar desprevenido do cidadão comum.
A acção activista de Isaque Pinheiro desconstrói todo este imaginário de exclusividade e de poder financeiro, seja no universo do mercado da arte, ou na aquisição de qualquer outro objecto, como aconteceu com uma empresa de bicicletas do Porto, a Velo Culutre, que reconheceu as gravuras como dinheiro caseiro, para aquisição dos seus produtos. A mala é só uma mala pintada manualmente por um artista, e as gravuras que representam as notas de 50 e 100 Euros são vendidas exactamente pelo valor de mercado de 50 e 100 Euros. A questão essencial que o artista nos coloca é o valor da obra de arte, e da sua autoria enquanto projecto artístico, no contexto de um mercado assente numa série de agentes que divulgam e protegem o trabalho dos artistas e o fazem circular.
No início de 2019, Isaque Pinheiro ficou sem esse factor de divulgação e promoção, dado que as galerias com que trabalhava cessaram a sua actividade. Iniciou então a impressão das gravuras com a face das notas de Euro vendidas pelo valor unitário que reproduzem, permitindo que o artista tenha acesso ao dinheiro do público comprador, ou institucional quando se trata de uma colecção privada ou pública. É como se cada uma destas gravuras fosse uma espécie de imagem de um título de investimento emitido pelo artista. Independentemente da eventual valorização destas obras, esta acção é no imediato auto-sustentável para a vida do artista no plano económico, e social no contacto com público, em eventos como as feiras de arte da ARCOLisboa e ARCOMadrid, em 2019.
Passado um ano sobre o início deste projecto, as feiras de arte ainda não aconteceram, o dinheiro e as transacções passaram para as plataformas electrónicas, plastificaram-se, diz-se agora numa gíria de reconversão da actividade económica. As gravuras manufacturadas e a mala/arquivo/galeria percorrem as redes sociais, enquanto obras de arte para venda. O seu valor será sempre distinto da inscrição impressa pela xilogravura, residindo no acto e no gesto político.
Mas é também um jogo, no sentido lúdico, quase como um jogo de tabuleiro. E parecendo irónico, é muito claro nas questões que nos propõe.
João Silvério