O ready made foi uma bomba de implosão no sistema da arte. Uma arma de destruição maciça. Ao arrasar toda a mitologia de raiz romântica que se tinha construído à volta da obra de arte e da sua suposta “aura”, ele refunda não só a arte contemporânea mas sobretudo o sistema de relações e de precedências que se tinha construído à sua volta. A obra deixou de ser o objecto mais intangível e passou a poder ser qualquer objecto, mesmo um mictório.
.. Ao levar o “seu” mictório para o campo da arte, ao rodá-lo e ao chamar-lhe “fonte”, Marcel Duchamp vira do avesso a relação do mundo com o museu. Agora, ao museu (de arte contemporânea), pode chegar qualquer coisa desde que tenha sido transportada por um artista. Este trabalho de Isaque estabelece uma subtil ironia com o conceito de ready made que, depois de Duchamp, foi glosado infinitamente. É, além disso, um objecto paradoxal na sua relação com o design. Apesar de produzido em série, todos os números são diferentes, não tanto pela intervenção directa do autor, não tanto por necessidade, mas sobretudo por acaso. A cozedura cerâmica das peças precipita aleatoriamente diferentes inclinações. No fim, cada trabalho é único, reivindicando o estatuto de design personalizado. Ou seja, novamente, de obra de arte.
Duchamp tinha virado do avesso o mundo da arte com o seu ready made. Isaque vira do avesso a ideia de ready made com o seu “Made For It”. Estamos perante um objecto que decidiu fazer uma rotação de 360 graus, ou seja, voltar ao lugar para onde tinha sido pensado, a casa de banho, oferecendo-se às mais diversas utilizações (desde toalheiro a vibrador imóvel, passe o oxímoro). O ready made de Duchamp tinha saído da casa de banho e, finalmente, chegado ao museu. O “Made For It” foi desenhado por um artista, produzido industrialmente numa fábrica de louça de casa de banho (ostenta orgulhosamente o carimbo da cerâmica de Valadares), mas foi directo para o local apropriado nâo lhe sendo permitidas outras veleidades. Todavia, só temporariamente. Provavelmente insatisfeito com a dimensão solitária dos vícios privados que estimulava, decidiu agrupar-se com os outros elementos dessa produção em série e, de uma forma milagrosa, transformar-se nesse impressivo painel que tem como título o milagre da transformação: “São Rosas Senhor…são Rosas!”. Afinal estávamos enganados. Trocaram-nos as voltas. Eram só rosas. Como se a arte se alimentasse desse jogo de sombras que a polissemia dos objectos permite. De resto, o que já Duchamp tinha intuído e Isaque confirmou.
Paulo Cunha e Silva, Maio 2003