O peão não é uma peça insignificante! Contrariando o que se diz para aí à boca pequena, que o peão é uma peça menor e que até pode ser facilmente sacrificado, a prática xadrezística demostra-nos o oposto, provando, de forma categórica, que este pequeno soldado é uma peça muito especial, e uma das mais relevantes do jogo dos Reis.
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As razões são várias. O peão é a única peça de xadrez que pode ser promovida, transformando-se numa outra peça — normalmente a Dama — assim que alcança a oitava casa. O peão é a única peça de xadrez que tem dois movimentos: um para avançar e outro para capturar as peças adversárias. O peão é a única peça de xadrez que pode tomar os outros peões na passagem, ou “en passant”, como se diz nos meios escaquísticos, um movimento especial de captura que a maioria dos “jogadores de domingo” pura e simplesmente desconhece.
Para além do mais, o peão só anda para a frente, um aspeto que pode ser visto como negativo pelas mentes mais invejosas, mas que na realidade demonstra que o peão só evolui, nunca regride. O peão goza da possibilidade de avançar duas casas no primeiro lance, um privilégio que também pode ser visto como uma discriminação positiva, mas que o peão aceita de bom grado. E, finalmente, como se ainda não bastasse, a suposta fraqueza dos peões, que aparentemente os diminui, acaba na prática por lhes conferir uma enorme força, porquanto faz com que as outras peças os temam e evitem colocar-se em casas que são controladas por eles. Basta observar uma qualquer partida de xadrez para vermos como isso invariavelmente acontece.
Em suma, o peão goza de várias prerrogativas, representando, em termos simbólicos, o povo, e por isso não é nada estranho constatarmos que a maioria dos planos estratégicos do xadrez sejam gizados a partir das estruturas de peões que ocorrem no tabuleiro. Razão tinha François-André Danican Philidor (1726-1795), renomado músico e extraordinário jogador de xadrez (muito à frente do seu tempo), quando em 1792, numa altura em que a França vivia momentos revolucionários, compreendeu o paralelismo entre o xadrez e a vida, escrevendo no prefácio do seu livro Le jeu des échecs uma frase que ficou para a história: “os peões são a alma do xadrez”.
Vem tudo isto a propósito da mais recente exposição do Isaque Pinheiro, que uma vez mais incorpora uma série de peões de xadrez. A pergunta que nos ocorre de imediato é a seguinte: porquê peões de xadrez? A resposta cabe, evidentemente, a cada um de nós dar. No meu caso, avanço aqui três propostas de leitura plausíveis, entre muitas outras possíveis.
Comecemos pela chave de leitura mais óbvia, aproveitado a sugestão de Philidor: os peões do Isaque, “à sua imagem e semelhança”, representam o artista, assim como todos nós, e remetem para o mal-estar cultural que a esmagadora maioria da população mundial atualmente atravessa.
Os peões do Isaque lembram-nos que vivemos uma profunda revolução civilizacional, que culminará não se sabe em quê, na qual o povo, contrariando as leis mais elementares do xadrez, está a ser completamente esquecido, ou mesmo espezinhado pelas classes dirigentes, que seguem as instruções obscuras de alguns mandarins. Os peões do Isaque recordam-nos que dentro deste povo há uns que sofrem mais do que os outros, visto que, por razões relacionadas com guerras económicas mascaradas de religiosas, são muitas vezes obrigados a deixar o seu país de origem e fazerem-se à estrada, ou mesmo ao mar, na procura (delirante?) de uma vida melhor. E os peões do Isaque mostram-nos que essa crise, longe de estar terminada, está a conduzir-nos para um mundo cada vez mais desigual, no qual impera uma conhecida máxima: “salve-se quem puder”. Donde a centralidade dos peões, bem como dalguns apontamentos da exposição que remetem para a deriva, ou possível naufrágio, exemplarmente materializado num pedaço de “jangada” branco, marmóreo, “clássico”, no qual se ergue um mastro de (des)esperança.
Diria que esta primeira leitura se situa no campo sociológico, mas também nos campos político e económico, trazendo-nos à memória o inesquecível quadro de Géricault, A Jangada da Medusa (1818-19), com os seus corpos amontoados, que depositam as suas últimas esperanças num sobrevivente acobreado, que acena a um barco distante que surge no horizonte. Será que o aceno artístico do Isaque irá ser visto pelos tripulantes desse barco que desponta? Será que poderá haver alguma salvação possível para os (nossos) corpos cansados desta jangada? Aparentemente, a resposta é afirmativa, a avaliar pela posição encimada, altiva, segura, com que os peões nos olham do alto da prateleira em que foram colocados. Ou então aqueles peões foram os únicos sobreviventes da jangada alva que conseguiram resistir à intempérie, e olham-nos, aliviados, num cenário de crise permanente. É uma outra perspetiva possível, ainda que bastante mais catastrófica.
A segunda chave de leitura leva-nos para o campo da psicologia.
Quando perguntei ao Isaque a razão de serem 22 peões, onze brancos e onze negros, fi-lo no pressuposto de haver algum motivo escondido por detrás daquele número. Estaria relacionado com algum jogo? Teria a ver com futebol, uma vez que é um jogo de onze contra onze? A resposta surpreendeu-me: “foram os peões que consegui produzir, que sobreviveram às várias tentativas que fiz.” Esta resposta fez-me imediatamente pensar numa espécie de pai magnânimo, que vai produzindo filhos “à sua imagem e semelhança”, sem qualquer objetivo em vista, disposto a aceitá-los todos de forma incondicional, nomeadamente aqueles que “nasceram” com defeito. Sim, porque muitos dos peões sobreviventes têm várias deformações, ou perderam mesmo a cabeça, no sentido literal do termo.
Estes peões diferenciados, que brotaram do mesmo molde, mas que por circunstâncias várias sofreram pequenas alterações, adquirindo deste modo uma identidade muito própria, fazem-nos lembrar a velha querela inato/adquirido, que tem acompanhado a história da psicologia e outras ciências antropológicas, a meu ver de um modo absolutamente disparatado. Como está fácil de compreender a partir dos peões do Isaque, aquilo que faz a diferença dos peões é a sua história de vida. “Geneticamente” os peões são todos iguais; vieram todos da mesma forma. Foram as vicissitudes da sua existência, os “acasos” que sofreram, e muito em particular aqueles que ocorreram nos primeiros momentos de vida, enquanto estavam ainda “quentes”, “moldáveis”, que lhes deram a sua identidade atual.
Da mesma forma, sabemos bem através da observação de gémeos verdadeiros, geneticamente idênticos, autênticos clones um do outro, que são as suas histórias de vida, as experiências mais marcantes que cada um deles viveu, que faz a diferença na sua identidade, ainda que muitos “cientistas”, nomeadamente aqueles ideologicamente mais ligados às teses inatistas, tentem desesperadamente provar o contrário. Daí que, por exemplo, um dos gémeos possa ser heterossexual e o outro homossexual; ou que, novo exemplo, um dos gémeos possa ser destro e o outro canhoto. Ambos nasceram da mesma célula, do mesmo material genético, que se dividiu em dois para originar dois seres inicialmente idênticos, mas foi a sua história única e irrepetível que lhes deu a sua identidade. Não foram os seus genes que os determinaram, foi sim a forma como esses genes interagiram com o meio circundante.
Indiretamente, é isto que os peões do Isaque nos lembram. Para algumas daquelas peças, não foi a sua forma inicial que as determinou, mas sim as suas primeiras “experiências de vida”. E mesmo essas, que lhes deram a identidade que detêm atualmente, não são decisivas para o resto da vida. O mais relevante é a interação, a forma como se tira partido dessa identidade prematuramente forjada. Porque ao longo do tempo irão surgir inúmeras possibilidades, bem como outras possíveis alterações identitárias, que marcarão a vida de cada peão, ou se quisermos, de cada um de nós. E a interação continua…, pelo menos até morrermos. Viva a complexidade.
E finalmente chegamos a terceira e última proposta de leitura: a chave duchampiana.
Como é bem sabido, Marcel Duchamp foi um excelente jogador de xadrez, dedicando parte significativa do seu tempo à prática desta modalidade. Tal entusiasmo pelo jogo, bem documentado em inúmeras imagens, permitiu-lhe chegar ao nível de mestre nacional de xadrez, dando-lhe deste modo a possibilidade de jogar ao mais alto nível em termos internacionais, defrontando alguns dos jogadores mais fortes da época, bem como a fazer parte da equipa francesa em várias olimpíadas, equipa essa que na altura era liderada por Alexander Alekhine, um dos mais famosos campeões do mundo de xadrez de todos os tempos. (Dagoberto Markl dedicou um livro à sua misteriosa morte no Estoril).
Também como é sabido, esta sua paixão pelo jogo estendeu-se à sua atividade artística, figurando ou servindo de inspiração para inúmeros quadros, artefactos ou mesmo objetos “ready-made”. Algumas dessas ligações artísticas ao xadrez são evidentes: é o caso, por exemplo, dos quadros La Partie d’échecs (1910), Portrait de joueurs d’échecs (1911) ou Le Roi et la Reine entourés du nus vites (1912). Outras ligações estão relacionadas com artefactos que foram construídos para a pratica deste jogo, como é caso das peças de xadrez que desenhou ou dos “carimbos” de peças que criou propositadamente para poder jogar xadrez por correspondência. E depois temos as peças ready-made que criou a partir deste jogo, como por exemplo Pocket Chess Set with Rubber Glove (1944), assim como muitas outras peças artísticas que estão relacionados com o xadrez, mas de uma forma velada, passível de ser entendida apenas pelos experts da modalidade. É o caso de La Fourchette du Cavalier (1943), que remete para uma jogada de xadrez, ou do seu suporte de garrafas Hérisson (1914), que quando traduzido para inglês passa a ser Hedgehog, nome de uma bem conhecida estrutura de peões de xadrez.
De acordo com Bradley Bailey, num texto publicado em 2009 intitulado “Passionate Pastimes Duchamp, Chess and the Large Glass”, a emblemática obra de Duchamp La mariée mise à nu par ses célibataires, même (1915-1923), também conhecida por Le Grand Verre (O Grande Vidro, na tradução portuguesa), enquadrar-se-ia neste tipo de obras com uma ligação interna ao xadrez, porquanto Duchamp, para a realização desta peça, envolveu-se num estudo exaustivo da história dos peões, que acabou por se materializar na obra sob a forma dos nove moldes. Na realidade, esta possível ligação do Grande Vidro ao xadrez já tinha sido sugerida previamente por outros autores (Michel Leiris e Calvin Tomkins). Porém, Bailey leva ainda mais longe a sua análise, argumentando que os nove moldes representam os oito peões do xadrez e o próprio Duchamp, funcionando deste modo como um autorretrato disfarçado. Continuando com as palavras de Bailey:
A minha análise centra-se principalmente num elemento específico do Grande Vidro que é amplamente considerado como um autorretrato disfarçado de Duchamp: os nove moldes (página 69). Vários estudiosos observaram que as formas dessas figuras parecem ter derivado de peças de xadrez. No entanto, apenas dois comentaram brevemente que o relacionamento se pode estender à iconologia do xadrez. A relação triádica entre Duchamp, o Grande Vidro e o xadrez é mantida através de várias fotografias em que esses três elementos são integrados numa única imagem, sugerindo uma relação mais enfática entre os moldes e o xadrez do que foi até agora reconhecido. De facto, que a secção do Grande Vidro, que se pensa representar Duchamp, derive provavelmente da iconografia do xadrez reforça a discussão maior de que a sua associação com o xadrez seja uma faceta central e subvalorizada da identidade do artista.
(pág. 49, tradução minha)
O que nos traz de volta aos peões do Isaque. Será que o artista quis trazer Duchamp à colação, usando os peões de xadrez para estabelecer um diálogo com o velho mestre? Ou será que o Isaque, à semelhança de Duchamp (a acreditar na leitura de Bailey), está a usar uma vez mais os peões como forma de se autorretratar? O título desta peça induz-nos neste sentido, ainda que as outras chaves de leitura aqui propostas também sejam, como vimos, perfeitamente possíveis.
A primeira chave enfatiza a situação que se vive atualmente em termos mundiais, na qual se escava uma vala cada vez mais profunda entre os poucos que têm muito e os muitos que ficam com pouco. Nesta leitura de pendor sociológico, os peões representam a maioria, aqueles que constituem os 99% da população, lembrando-nos que as outras peças deste tabuleiro, apesar de por vezes parecerem que estão a jogar a nosso favor, pertencem na realidade a outras castas, executando na maioria das vezes planos espúrios que não nos favorecem de todo.
Na leitura psicológica relembramos que é pela diferença que se traça a identidade, e que essa diferença se faz não só pela matéria originária que nos constitui, mas sobretudo pelo percurso de vida, através da experiência, da interação, do modo como “enfrentamos” a realidade. Nesta proposta interpretativa, o peão continua a representar-nos, mostrando que a ontogénese se sobrepõe à filogénese, dando-nos alento para continuarmos a nossa luta. O que não significa que a forma, que serve de base para aquilo que une todos os peões, deva ser desvalorizada. É que esta leitura tem um perigo: a questão da identidade. Se nos deixarmos levar pela variedade fenotípica e nos esquecermos da base genotípica, corremos sérios riscos de nos deslumbrarmos e pensar que seremos o próximo peão promovido, o sucessor do Cristiano Ronaldo. Esta leitura identitária é perigosa porque não vai à base do problema, que assenta numa luta de castas. Se os peões começarem todos a guerrear entre si, procurando tirar partido da sua diferença, a pensar que a salvação de todos passa pela promoção de uns poucos “escolhidos”, acabarão por fazer o jogo do inimigo, mantendo o status quo. E o status quo, como sabemos, não é benéfico para o peão.
E finalmente temos a última leitura, mais artística, mais técnica, mais hermética, que nos coloca em diálogo com Duchamp, que foi, como sabemos, o mestre que revolucionou a forma de olharmos a arte, o que nos permite estar hoje a refletir sobre peões de xadrez enquanto objetos de arte. É uma chave menos óbvia, na medida em que remete para a faceta mais xadrezística do pai dos ready-made, mas ainda assim possível porque Duchamp e Isaque são artistas, e os artistas gostam de jogar uns com os outros.
Três leituras, portanto: sociológica, psicológica, artística.
Naturalmente que estas três propostas não esgotam de todo as inúmeras leituras possíveis sobre os peões do Isaque. Estão a faltar aqui as leituras fenomenológicas, pós- modernas, hermenêuticas, desconstrutivistas e quejandos, que têm pautado as invertebradas interpretações ecléticas, tão contemporâneas, que pululam por aí, “à imagem e semelhança” dos seus autores. Deixemo-las para outros, mais cultos, visionários e capazes. Fiquemo-nos antes por aquilo que diz mais respeito às nossas áreas de interesse, relembrando, contudo, que o mais importante são os peões do Isaque, porque são eles que estão no centro desta exposição, são eles que nos olham do alto do plinto.
Talvez possamos arriscar dizer, em jeito de conclusão, que se Philidor voltasse ao mundo e visitasse a exposição do Isaque, eventualmente não ficaria surpreendido com a centralidade dos peões, embora pudesse querer reescrever a sua célebre frase, passando a ser algo do género: “Os peões continuam a ser a alma do xadrez, mas são precisos artistas como o Isaque para nos relembrar.”
J’adoube!
Bibliografia citada:
Bailey, Bradley. 2009. “Passionate Pasttimes: Duchamp, Chess, and the Large Glass.” In Marcel Duchamp: the Art of Chess, edited by Francis Naumann and Bradley Bailey. New York: Readymade.
Diniz Cayolla Ribeiro (I2ADS-FBAUP), Janeiro de 2018
Diniz Cayolla Ribeiro