Um dos fascínios da arte é que, tal como sucede com o Direito, está sujeita a interpretação. Nenhuma lei foi escrita para nunca ser lida ou interpretada, mesmo que literalmente, assim como nenhuma obra, ao ser apreciada, deixou de ser objeto de um ensaio conjetural. Tanto a arte como o Direito são evolutivos, incompreendidos, ubíquos, disruptivos e manifestações cognitivas da natureza humana.
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A interpretação tanto pode consubstanciar o ato de descobrir o significado de uma determinada exteriorização sensorial, acertando ou errando naquilo que foi intencionalmente criado, como abranger a possibilidade de o intérprete não efetuar qualquer descoberta, mas de ser o próprio a desenvolver o seu significado, tornando-se parte ativa, quiçá integrante, da criação em causa. É o que sucede quando, por exemplo, o Supremo Tribunal de Justiça profere um acórdão uniformizador de jurisprudência ou quando um curador escreve um texto sobre uma determinada exposição artística. Em alguns casos, menos comuns, só há uma resposta possível à interpretação, noutros, as possibilidades são tão infinitas quanto a imaginação.
“A Malha”, expressão que oferece o título à exposição do artista Isaque Pinheiro, patente na galeria .insofar, em parceria com a ArtWorks, composta por cento e cinquenta e cinco esculturas, transportar-nos-á inevitavelmente para a conceptualização das malhas da Justiça, metáfora atinente à aplicação do Direito em casos concretos, mas também à rede intrincada de pessoas, normas, processos, instâncias, órgãos e atos que compõem o sistema de Justiça em Portugal. Cada vítima que apresenta queixa, cada arguido que pugna pela sua liberdade, cada tribunal que julga, cada trabalhador que exige ser pago pelo seu esforço, cada empresa que cobra uma dívida, cada órgão que fiscaliza uma atividade, cada cidadão que demanda judicialmente um comerciante, cada profissional que luta pela efetivação de direitos, cada voz que não se deixa calar, cada criador que avoca para si os frutos da sua obra, são a meritória e ínfima personificação, cada um deles, do Estado de Direito em que vivemos. Mais do que isso, significam pedaços de vidas reais, ora esculpidas em camisas, curiosamente de colarinho branco.
É, assim, de forma inusitadamente natural, que cada uma das esculturas da exposição se encontra referenciada por um processo real, que corre ou correu termos na Justiça portuguesa. Os processos em causa abrangem várias áreas do Direito, diferentes instâncias ou órgãos decisórios que actuam no sector, incluindo uma panóplia alargada de tipos de ação. Processos mediáticos e desconhecidos. Alguns, com causas de centenas de milhões de euros e outros, de uma centena de euros. Uns, de maior litigiosidade e outros, solucionados por acordo. Casos caricatos a juntarem-se a outros, repulsivos. Uns, mais compreensíveis ao público em geral do que outros, tecnicamente complexos. Decisões que são revertidas em sede de recurso. Processos que envolvem gigantes económicos e cidadãos anónimos. Porque um retrato da Justiça será sempre o retrato mais fidedigno de uma sociedade.
As obras estão expostas na fachada, o que poderá remeter para a exploração do sentido polissémica da palavra. Tal circunstância, além da originalidade intrínseca, torna a instalação expositiva num projeto de arte dirigido ao espaço público, acessível a todos, de forma contínua e ininterrupta, sem qualquer tipo de discriminação, tal como sucede, ou deveria suceder, com a Justiça. Cada direito só o é, se puder ser exercido.
O Direito deve ser a materialização da Justiça, enquanto primeiro pilar da construção perpétua de um modelo de organização social. Se a Justiça é cega, por tratar cada pessoa de modo igualitário, é também sindicável, impondo-se a quem a perscruta, o dever de aferir se a mesma é objetiva, livre, verdadeira, segura, regular, útil, moral e virtuosa. Através das obras ora expostas, somos convidados a proceder a essa análise de forma mais aprofundada. É interrompida a tradicional representação da Justiça nas artes plásticas, através dos símbolos comummente utilizados, tais como a deusa, a venda, a balança, a espada ou o martelo. A beca e a toga são metaforicamente substituídas por camisas tão aprumadas quanto destruídas, de forma fundamentadamente arrojada, demonstrando que até da destruição pode emanar o belo. É que o poder ideológico, ainda que mediato, mas materializável, sobrepõe-se determinantemente a todos os demais poderes. Se a jurisprudência está recheada de decisões relacionadas com a arte, tais como aquelas respeitantes a direitos de autor, neste exercício expositivo é a Justiça que é chamada à barra das artes.
Fábio Raposo